Ercole Spada: a beleza como consequência
As profissões criativas, como a arquitectura, o design, a fotografia, a publicidade, exigem dos seus autores uma certa veia artística. Só que ao contrário do que acontece com o artista plástico, o letrista ou poeta, estes profissionais têm de encaixar a sua criatividade em objectivos concretos, o que torna o exercício criativo um pouco mais difícil.
Por vezes é fácil esquecermo-nos de que um designer automóvel não é simplesmente um artista. Não é simples criar algo belo, quando se tem de lidar com questões como eficiência aerodinâmica, espaço e ergonomia, integração dos componentes pré-existentes, etc.
Por isso, quando o legado de um designer automóvel está praticamente ao nível de um corpus artístico, significa que a capacidade criativa do autor superou obstáculos e transcendeu a fronteira técnica para um âmbito cultural.
Assim acontece no caso de Ercole Spada, um designer automóvel muito pouco preocupado com adereços e adornos, mas capaz de criar beleza como poucos.
Nascido para vencer
A carreira do designer começou bastante cedo, mas mesmo à nascença, parecia destinado a algo maior. Alguém cujo nome se traduz como “Espada de Hércules”, parece almejar a algo grandioso, e a brilhante sonoridade do nome no idioma original, seguramente ajudou a tornar marcante a sua carreira.
Depois de uma adolescência vivida a esboçar carroçarias e a trocar revistas de automóveis com os seus companheiros de escola, foi aos 23 anos, assim que completou o serviço militar obrigatório, que Ercole tomou a decisão de procurar um emprego na área. Enviou candidaturas para a Abarth, para a Alfa Romeo e para a Zagato e “o resto é história”.
A Zagato tinha já uma reputação como carroçador, mas não será exagero dizer que foi Ercole Spada a traçar o carácter que distinguiria a assinatura Zagato dos demais estúdios de design. Há um fio condutor e um traço de carácter nas criações da Zagato, independentemente da marca cliente, sem, no entanto, desrespeitar a identidade própria de cada uma. É um equilíbrio muito difícil de conseguir, mas que Ercole Spada atingiu em pleno.
Logo após a entrada no estúdio, Spada integrou a equipa que realizou o Bristol 406 S, e a sua performance impressionou Elio Zagato, que sentiu confiança para lhe entregar o projecto encomendado pela Aston Martin. Para poder ombrear com o então recente Ferrari 250 GTO, David Brown precisava de um modelo mais leve, mais ágil e mais aerodinâmico do que o DB4 GT. Nascia assim o universalmente aclamado GTZ, considerado por muitos como um dos automóveis mais belos de sempre. Contudo, a beleza não estava na lista de prioridades. Foi apenas uma consequência das escolhas necessárias em busca da performance: linha de tejadilho baixa; superfície frontal menos volumosa; traseira em cunha para menor resistência aerodinâmica e o menor espaço possível entre a carroçaria e os elementos mecânicos. Uma espécie de “vestido justo”.
Uma silhueta como “assinatura”
O foco na aerodinâmica tornar-se-ia mais evidente no projecto seguinte: o novo Giulietta SZ, que receberia o epíteto “Coda Tronca”, ou seja, “cauda cortada”. Apreciando as duas versões de perfil, é óbvia a transformação e embora, esteticamente, seja difícil escolher um preferido, a verdade é que o formato desenhado por Spada se provou muito mais aerodinâmico e eficaz, graças, ao chamado “Kamm tail”.
Este formato de carroçaria foi celebrizado por Ercole Spada, mas era o próprio a recordar que a investigação que levou à definição desta solução, foi da autoria de Reinhard von Koenig-Fachsenfeld e Wunibald Kamm nos anos 30.
A mesma solução havia de ser usada noutros dois emblemáticos e marcantes Alfa Romeo: o sublime Giulia TZ (Tubolare Zagato) e o seu sucessor mais radical, o TZ2. Mas a solução “Coda Tronca” seria usada também modelos de estrada, como o pouco consensual 2600 SZ e, mais tarde, num modelo de produção em pequena série (1516 unidades), o Junior Z, que Spada dizia ser o trabalho de que mais se orgulhava.
No entretanto a Zagato foi trabalhando também com a Lancia, com Spada a desenhar o Flavia Zagato, o Flaminia Super Sport e o mais relevante Fulvia Sport. Com cerca de 7000 unidades produzidas, este foi o primeiro modelo a obrigar a empresa a abandonar os métodos artesanais próprios de carroçador, para adoptar uma produção industrializada.
Mas neste período em que liderou os estúdios Zagato, outros projectos ficariam na história, como o Osca 1600 GTZ ou o brilhante Lamborghini 3500 GTZ, mas também exercícios pouco conhecidos para marcas de grande relevo, como o Rover 2000 TCZ, ou o Fiat 125 GTZ. A decisão de não avançar para a produção deste Fiat, foi uma das grandes frustrações de Spada e a gota de água que o fez abandonar a Zagato em 1969.
Magia na Baviera
Depois de dedicar uma década de vida ao pequeno carroçador, Ercole Spada foi à procura da experiência de trabalhar para grandes construtores. O primeiro deles foi a Ford, onde apesar de ter entrado com um elevado estatuto, viu pouco do seu trabalho tornar-se público. A excepção foi o elegante GT70, um Ford de motor central que tinha como ambição defrontar o Lancia Stratos nos ralis.
Uma vez na Alemanha, passaria momentaneamente pela Audi antes de ingressar na BMW. Ali, criou talvez as gerações mais elegantes e marcantes da Série 5 e Série 7: o E34 e o E32. Passados mais de 30 anos, é difícil encontrar desenhos mais marcantes, influentes e consensuais nos respectivos segmentos.
Ercole recordava estes anos na BMW como memoráveis, pois considerava que trabalhar com os recursos de um grande construtor era uma experiência gratificante. Foi também, curiosamente, a primeira vez em que teve hipótese de dispor de um túnel de vento para testar a aerodinâmica dos seus desenhos.
Será justo dizer que estas duas criações foram fundamentais, a par do Série 3 E30, na alavancagem de um inédito crescimento da marca, que a levou ao estatuto actual.
O chamamento da pátria
Ninguém aprecia particularmente trabalhar demasiado longe de casa e isso fará ainda mais sentido quando se é um designer automóvel e a nossa pátria é a capital mundial do design. Assim, Spada regressou a Turim para integrar o I.DE.A - Institute of Development in Automotive Engineering. Este estúdio independente foi criado em 1978 pelo magnânimo arquitecto Renzo Piano e pelo engenheiro Franco Mantegazza e viria a assumir um papel preponderante na indústria, assegurando uma relação contínua com o Grupo Fiat.
Um dos mais importantes produtos realizados ao serviço do I.DE.A por Ercole Spada, terá sido o Fiat Tipo, um modelo de linhas vanguardistas e cuja funcionalidade o tornaria uma referência para o segmento.
Da plataforma do Fiat Tipo resultaram muitas derivações, várias desenhadas por Spada e com pontos em comum: O Fiat Tempra, o Alfa Romeo 155 e ainda a segunda geração do Lancia Delta.
Ao serviço do I.DE.A, houve outra criação que passou relativamente despercebida deste lado do Atlântico: o Ferrari PPG Pace Car de 1987. Criado exclusivamente para a função de pace car da Indy Car Race Series por encomenda da empresa de tintas e acabamentos para a indústria automóvel, PPG, patrocinadora do campeonato. Denominado Ferrari Mondial T Special Pace Car, era um modelo perfeitamente funcional e que hoje vive numa colecção particular.
Durante este período, embora seja um facto pouco conhecido, Spada desenhou ainda um modelo bem famoso: o Nissan Terrano II.
O bom filho...
Em 1992, o designer regressou às suas origens, ou seja, aos estúdios Zagato. Nesta nova etapa, o seu projecto mais relevante foi construído com base num Ferrari 512TR acidentado. O FZ93 foi um concept com um estilo pouco consensual, como era apanágio da Zagato, mas cujas linhas viriam a ter algum eco no Ferrari Enzo, que surgiu dez anos mais tarde.
O seu outro projecto deste período, esteve ligado a uma tentativa de ressurgimento da marca Osca, mas o 2500 GT com motor Subaru, nunca saiu da fase de protótipo.
Uma última etapa, de olhos no futuro
Após a saída da Zagato, Ercole Spada viria a seguir o caminho de tantos outros estilistas, criando um estúdio com a sua própria assinatura e em parceria com o filho, Paolo Spada. Com as marcas Spada Concept e Spada Vetture Sport, a empresa dedica-se a mais do que automóveis, com projectos de design industrial em diversas áreas.
A subida ao Olimpo
Ercole Spada, morreu a 3 de Agosto, com 88 anos. Uma longa e recheada vida, que deu muito à história do automóvel. O facto de não ser um nome tão celebrado quanto outros, explica-se por ter desenhado, fundamentalmente, modelos de pequena produção e quase sempre sob a marca Zagato. No entanto, a funcionalidade e beleza das formas que criou, influenciaram fortemente o estilo de outros designers.