Ford Transit, a sexygenária de que todos gostam.
A Ford UK, no seu argumentário promocional dos anos 90, estimava que, provavelmente, todos os britânicos, em alguma altura da sua vida, tinham sido transportados numa Transit. Em 2025, talvez não seja um exagero acreditar que isso é verdade também em Portugal, apesar de haver cada vez mais e melhores alternativas. O certo é que quase todos nós temos uma estória pessoal com a Transit.
Ainda está lá por casa da minha mãe o disco “single” em vinil distribuído aquando do lançamento do “facelift” da segunda geração da Transit. Tinha duas músicas, do lado A, uma do Frei Hermano da Câmara e do lado B, uma da Lena d’Água. Em ambos os lados, tinha também o “jingle” publicitário da Ford Transit que, se bem me lembro, era cantado pela própria Lena d’Água e não sei o que dizia ao certo, mas sei que o refrão era “Faça você o que fizer, com Ford Transit faz melhor.”
Eu era criança e, mesmo assim, escutava essa frase com cepticismo. Não só porque da boca da Lena sempre saíram muitos disparates, mas porque me parecia altamente improvável que a Transit fosse a resposta certa para tudo. Hoje, talvez pense doutra maneira...
A única coisa que eu sabia acerca da Ford Transit, naquela altura, era que dava uma boa viatura de férias. Há quem acampe por necessidade, mas o meu pai tinha mesmo um verdadeiro fascínio por férias em campismo. Penso que isso se explicava pelo facto de ele ser capaz de adormecer em qualquer situação, por desconfortável que parecesse, mas adiante... Sei que para umas dessas férias o meu pai pediu ao seu patrão que o deixasse trocar a Peugeot 304 de serviço por uma das Ford Transit da frota, para podermos levar toda a tralha para o campismo. A visão do furgão encostado à tenda da “Cavada Nova” (quem se recorda?), fazia lembrar – sem desrespeito - um acampamento duma daquelas famílias numerosas de que não podemos escrever o nome. Mas a verdade é que o espaço de carga foi muito útil e eu, que até apreciava a estética da Transit, adorei a oportunidade de andar num tipo de veículo diferente.
Não foi a minha única experiência de desconforto numa Ford Transit e, uma vez mais, devo também esta ao meu pai, que era caçador. Eu, que adoro quase todo o tipo de animais, sempre detestei a ideia, mas não seria capaz de demovê-lo e, a partir de uma certa idade, comecei a acompanhá-lo. Ele e o meu avô tinham a esperança de que eu ganhasse o gosto pela caça, mas eu só tinha duas ambições: caminhar pelos montes e comer os deliciososo bolinhos de bacalhau que a minha avó preparava para o farnel dos “carregadores de espingardas”.
Ora, numa dessas viagens, fomos na Transit do Sr. António, amigo do meu avô que tinha uma mercearia na Rua Pedro Hispano, bem em frente ao parque dos STCP. Para transportar a família, o Sr. António tinha um Granada MkII. Como a Transit era para abastecer a mercearia, só tinha três lugares. Mas nós éramos cinco ou seis passageiros... então, como recomendam as regras de segurança rodoviária, íamos atrás, em cadeiras de campismo! Isto de madrugada, com frio e apenas uma rede a separar-nos dos cães do Sr. António, que nunca devem ter sabido o que era um banho.
Eu tentava dormir naquele máximo desconforto e, ao mesmo tempo, não agonizar com o cheiro dos cães. Não estava a resultar e, por isso, lembro-me de, a meio da viagem, ter sido transferido para um carro de outros companheiros de caça que eu não conhecia, mas que era novo em folha! Eu entrei, ainda de olhos semi-cerrados e, quando despertei um pouco, dei por mim na estranha situação de estar num modelo que não reconhecia. Fui todo o caminho a pensar “Mas de que marca é isto? Nunca vi um carro destes. Não reconheço este interior...” Eu tinha uns nove ou dez anos e só na chegada ao destino é que aprendi o que era um Suzuki Swift GTI AA33S.
Assim, por esta altura, eu não tinha as melhores recordações das Ford Transit. Eram veículos a que eu reconhecia a versatilidade, mas que associava apenas a situações de desconforto. Mas nos anos 90, tudo mudou... O meu pai tinha uma pequena empresa, na qual era essencial ter um furgão. Começou com um decrépito Bedford CF250, passou para uma Renault Trafic de 1986 com sete lugares e, em 1995, evoluiu para uma novíssima Ford Transit “Topline”, que correspondia ao “facelift” da terceira geração.
O meu pai nunca comprava carros novos, pelo que o meu primeiro contacto com o cheiro a carro novo, veio pelas carrinhas da pequena frota da empresa. Que sensação espectacular! Ainda por cima, eu achava bonito este modelo da Transit. Aliás, o cuidado com a estética foi algo que sempre diferenciou as Transit. Esta tinha ainda a virtude de vir equipada com direcção assistida e o volante mais grosso que a humanidade conheceu.
Ora, por esta altura, o meu irmão já conduzia há algum tempo e o responsável do armazém era um amigo dele. Assim, havia duas pessoas que eu, então com 16 anos, conseguia persuadir para me deixarem conduzir. E foi assim, em pisos de terra, que descobri o fascínio da “tracção atrás” com pouca motricidade.
Afinal, a Lena D’Água talvez tivesse razão...
Esta faceta “desportiva” da Transit parece um bocado absurda, mas não era nada em que a Ford já não tivesse pensado por várias vezes, com as Supervan de 1965, 1984 e de 1995. Estes excêntricos furgões escondiam debaixo da carroçaria de comercial, as melhores mecânicas de competição do seu tempo. A Supervan MkI tinha montado em posição central o motor V8 de 5.0 litros com preparação Gurney-Weslake, exactamente igual ao de um GT40 contemporâneo. Já a segunda Supervan, de 1984, era um caso mais sério, pois apesar da aparência familiar, assentava no chassis de um protótipo Ford C100 de Grupo C, com o respectivo motor V8 Cosworth DFL, com bem mais de 400cv.
Já a versão de 1995, tecnicamente, não era mais do que a mesma Supervan com a carroçaria actualizada mas, no entretanto, a Ford chegou a instalar o motor 3.5 usado pelo Benneton de F1, com 650cv. Talvez por questões de manutenção, esta alteração viria a ser revertida.
Como se pôde ver recentemente no Goodwood Festival of Speed de 2025, todas as três Transit Supervan continuam a existir e funcionam.
Na verdade, a Ford, mais do que qualquer outro concorrente, sempre se esforçou por dar à Transit um comportamento o mais próximo possível de um automóvel ligeiro, com o máximo de agilidade e segurança que o formato permitia. A prova de que terá conseguido, é que no Reino Unido, a dada altura, os relatórios policiais admitiam que 90% dos veículos usados em assaltos a bancos eram Ford Transit. Um facto agridoce para a imagem do modelo, mas que prova as suas virtudes.
Para quem é português, a imagem desportiva da Transit não termina aqui... Faz parte da memória colectiva a imagem do Team Diabolique em todo o seu esplendor e, desse “folclore”, fazem parte as Transit de assistência, algumas delas eternizadas em miniaturas, produzidas sobretudo pela IXO.
A primeira de todas, da era dos Escort MkII e Porsche SC, era uma MkI a gasolina, com o motor V4 Taunus, de tecto elevado e rodado duplo. Seguiu-se mais do que uma MkII diesel de chassis curto e rodado simples e, mais tarde (na época do RS200 e dos Sierra RS Cosworth, uma MkII “facelift”, com chassis longo, porta de correr e rodado duplo, com aqueles alargamentos que, ironicamente, lhe davam um ar “racing”. Por fim, houve ainda uma MkIII de chassis longo.
O tempo encarregou-se de fazer desaparecer estes pedaços de história mas, felizmente, há quem se dedique a recriá-las. Uma prova disso está na garagem de um “gentleman driver” e coleccionador português que, além de proprietário do Sierra RS Cosworth JZ-27-20 e do posterior 4x4, tem agora o “set” completo, ao adquirir uma Transit MkII “facelift”, que é uma réplica exacta daquela usada pela equipa Diabolique.
Mais uma prova de que todos temos memórias e referência do modelo e que, algumas delas, são até partilhadas. E nem vamos entrar pelo caminho das férias de juventude feitas na Ford Transit e de potenciais aventuras com o motor desligado. Deixamos isso para outro tipo de sites.
O sexagésimo aniversário da Transit e a nostalgia que desperta, prova que os veículos que mais significado têm na cultura popular, não são os mais caros ou mais exóticos, mas aqueles que, de alguma forma, esculpiram o dia-a-dia da sociedade, de forma discreta, mas consistente.