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Precisamos de mais “tuning shows” e de Guilhabreu?

Para a cultura automóvel não ser asfixiada pela sociedade, precisamos de controlar certas actividades. A solução? Multiplicá-las e defendê-las.
Hugo Reis
26 de set. de 2025

Fotos: Rui Queirós, BICS, Associação Portuguesa de Centros de Formação de Condução Avançada (facebook) 

Adoro escrever acerca de tudo o que tem a ver com automóveis. Só há uma coisa que não gosto de escrever, que é o óbvio. Não gosto de ter de repetir o que já está na ponta da língua de tantos, mas, por vezes, é preciso fazer eco de certas ideias e realidades, para que elas ganhem alguma tracção e para que a “resistência” ganhe substância. 

Feios, porcos e maus
O Braga Car Show, é um evento que tem já alguns anos, que tem vindo num crescendo e que subiu de tom a níveis descontrolados nas duas últimas edições, o que motivou que, neste momento, esteja na iminência de ficar sem “casa” para acontecer.

A popularidade do evento subiu até rebentar pelas costuras. Passou a ser a grande festa ibérica de quem aprecia aquele tipo de manifestação motorizada. 

Tornam-se mediáticas as imagens de pessoas penduradas em automóveis (ou o que resta deles), a agarrá-los para que não saiam do sítio, há pneus a rebentar, há labaredas, há fumo pelo ar, demasiados troncos nus, e um cenário que parece uma espécie de Mad Max dentro duma jaula, que são os muros do recinto. 

É fácil, para quem está de fora, ficar horrorizado e achar que estamos perante um grupo de “feios, porcos e maus”. Mas tal como o filme de Scola, o que nos chega é um retrato extremo de uma realidade que muito de nós não conseguimos entender. 

Sim, não é uma maneira sofisticada de viver o mundo automóvel, nem a mais subtil. Mas termos uma atitude mais ou menos sobranceira (ou mesmo snob) acerca do que ali acontece, é tão útil como explicar àqueles senhores porque é que alguns de nós achamos piada a estar de blazer num relvado, a ver à lupa automóveis desligados, num concurso de elegância.

É fácil ridicularizar. Eu confesso que detesto tudo o que vejo naquelas imagens e tenho dificuldade em entender a piada do que quer que aconteça ali dentro, mas há um ponto comum entre aquelas pessoas e nós, que é o fascínio pelos motores.

Não somos iguais, mas estamos juntos
Aquilo que aqueles entusiastas ali fazem, sejam burnouts, drag races, rateres, churrascos, rodeos, explosões, touradas, sado-masoquismo motorizado, atropelamentos em massa, seja o que for, só a eles tem de agradar e só a eles diz respeito. É inegável que estão a divertir-se à sua maneira e isso é legítimo. A liberdade (ao contrário do que muitos acham), continuará sempre a ser o bastião máximo. 

Há também que aplaudir a capacidade de mobilização, que supera qualquer evento de desporto motorizado de dimensão ibérica. E, precisamente porque são tantas as pessoas a apreciar este tipo de eventos, há não só que respeitar a intenção (independentemente de condenarmos os excessos), como tentar ajudar a encontrar soluções para que estes eventos contribuam para sustentabilidade do automobilismo no seu todo.

Querer pôr fim estas actividades (falo nomeadamente do potencial fecho da pista de Guilhabreu), vai ter duas consequências fundamentais. Uma que nos pode ou não afectar, consoante a sorte que tenhamos, e uma outra que já nos afecta. 

A primeira consequência da eventual interdição dos “tuning shows” e da pista de Guilhabreu, é demasiado óbvia: o que ali se passa vai transferir-se para as ruas. Para uma zona industrial remota se tivermos sorte, ou para a porta de nossa casa se tivermos azar. E como serão acontecimentos clandestinos, ilegais, descontrolados e sem muros, vão incomodar pelo barulho e sujidade se tivermos sorte, ou vão resultar no atropelamento de um inocente da nossa família se tivermos azar. 

A segunda consequência óbvia, é aquela  prognosticada na citação de Martin Niemöller: “Primeiro vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado, porque não sou socialista (...)” e que todos sabemos como termina... no fim, não restará massa crítica. Ninguém para se manifestar contra injustiças. 

A primeira vítima fácil são os eventos de tuning. Mas, no Estoril, foram as provas de velocidade, os track-days e o automobilismo em geral. Já chegou também ao motociclismo, com os track-days do Estoril a tornarem-se proibidos. E quanto ao futuro do Vasco Sameiro... faltam-me as palavras, mas esse era tema para outro artigo, tal é a complexidade.

Ser advogado dos dois Diabos
Eu não aprecio o tuning (nos termos em que hoje a expressão é usada), mas tenho também dificuldade em entender o que acontece num evento como o Braga Car Show como sendo tuning. É mais um uso desbragado (não era uma chalaça) e irreverente do automóvel, para fins que os envolvidos entendem como divertido.

Não gosto, mas não preciso de gostar para defender que quem participa deve ter o direito de o fazer. Entre paredes, é o local certo. Que façam o que entendem naquela “arena” e que saiam civilizadamente e conduzindo sóbrios. 

Provando que sou um bom advogado do Diabo, sou não só capaz de defender os participantes, como sou ainda capaz de defender a vizinhança que quer acabar com esses eventos, porque o nível de ruído e poluição, e a duração do evento, são provavelmente excessivos.

Note-se que a vizinhança de Baltar está habituada a conviver com especiais do rali de Portugal, com fins-de-semana de rallycross e, no entanto, sentiram-se agora demasiado incomodados. Por alguma razão há-de ser.

Solução? Mais eventos destes.
Dividir para conquistar, é a única solução possível. Não é razoável concentrar no circuito tanta gente, durante tantas horas, com tal intensidade. Se a organização deste evento não quer ver morrer a galinha dos ovos de ouro (e não quero com isto dizer que é o dinheiro que os motiva), acredito que tem que regular. 

Estabelecer números máximos de participantes, ter um horário de actividades muito mais curto (sem entrar pela noite), fechar a bilheteira com antecedência e guardar procura para mais edições ao longo do ano. Cada edição poderá eventualmente ser menos rentável, mas o negócio torna-se mais sustentável se conseguir ser socialmente aceitável.

“Legalize it!”
O caso de Guilhabreu tem contornos especiais. Aquela pista tem sido, para uma imensidão de entusiastas, um verdadeiro paraíso. Não só para praticantes do drift, mas para encontros de clubes, para escolas de condução desportiva, etc. 

A pista é antiga, mas o drift é um fenómeno relativamente recente e é daí que advém o acréscimo da intensidade de utilização da pista.  A pista de Guilhabreu, que foi inaugurada nos anos 80 como “centro de formação avançada de condução”, era então um projecto ambicioso e meritório, cujos objectivos não foram totalmente concretizados, por questões que não importa esmiuçar, até porque não tenho dados para isso.

Actualmente, está sem licença desde 2016 e é desde então que, paradoxalmente, a actividade tem sido mais intensa. Mas para agravar mais ainda a situação, e naquilo que acaba por resultar como uma provocação à vizinhança, são frequentes os eventos nocturnos, realizados entre as 22h e as duas da manhã. Se o Circuito do Estoril tentasse algo parecido, nem consigo imaginar o que acontecia! 

Só que aqui, ao contrário do que acontece no Estoril, a casa tem telhados de vidro. Isto porque, além da alegada falta de homologação e licenciamento, muitos eventos que lá acontecem não são licenciados e, apesar de haver receitas, não há facturação declarada (fazendo fé no que é veiculado nos jornais e peço desculpa, desde já, se estiver a reproduzir um erro). 

A mim também incomoda que seja necessário haver FPAK em tudo quanto são manifestações de carácter minimamente desportivo. Não porque ache mal a regulamentação, mas porque isso onera sempre excessivamente os eventos, e não tinha de ser assim. Em Portugal, ao contrário do que acontece noutros países, sempre que a Federação é chamada a intervir, a modalidade torna-se quase inacessível e definha. A excepção talvez seja o campeonato nacional de regularidade histórica.

O que já não tem desculpa, é a alegada irregularidade comercial destes eventos, sem facturas ou descontos. É uma forma dos organizadores e dos proprietários da pista se porem a jeito para que lhes fechem as portas. Além das consequências directas, há toda uma má imagem que nada ajuda à nossa causa. 

O meu apelo aos organizadores e proprietários é de que façam um esforço para limitar os horários e legalizem estas actividades, que até têm o potencial de se auto-financiar, ou mesmo de serem um negócio lucrativo. Para prejudicar a imagem do automobilismo, já bastam os clubes sem estatutos ou contabilidade, as associações sem eleições ou assembleias, etc.

Além disso, envolvam a comunidade circundante. Pensem em formas de a servir, criando uma área para festas a custo simbólico, uma pista para crianças brincarem e aprenderem as regras de trânsito, nomeadamente com o envolvimento das escolas, criem eventos dedicados à comunidade local e às famílias, etc. Tentem envolver o poder local nessas ideias. Sejam uma peça da sociedade local e não um “corpo estranho", fácil de marginalizar.

Detalhes que não são pequenos
Apesar dos excessos e eventuais irregularidades, a pista de Guilhabreu tem sobrevivido às pressões externas. Não fosse pelos dois recentes acidentes, talvez não houvesse tanto eco dos excessos. 

A grande novidade, trazida à luz por uma notícia recente, é a intenção da Misericórdia local de construir uma residência para idosos nas imediações da pista. A ideia é, no mínimo, bizarra, a menos que haja uma certa dose de certeza de que vão conseguir desalojar o automobilismo, a fim de concretizar esse lucrativo negócio com a paz que ele exige. 

Num eventual braço de ferro com uma Misericórdia, os proprietários da pista nem com a mão divina poderão contar...

Mudar mentalidades, gerir a convivência
Em Portugal, os autódromos são cada vez mais tratados como os aterros ou centrais transformadoras de resíduos: todos acham bem, desde que não seja perto do seu quintal. A questão é que eles têm de existir, para bem de todos e, especialmente, dos que não gostam de automóveis. 

Por outro lado, também os entusiastas destes eventos mais radicais, têm de entender que a não existência de regras dentro do evento, não significa que o circuito seja uma ilha. 

Uma coisa é certa: o cerco está a apertar-se em torno dos circuitos nacionais, sendo Portimão e o recente Circuito do Sol, os únicos “paraísos”, por não terem habitação à volta. A questão é: será sempre assim no futuro? Não deveria haver algo que salvaguardasse os direitos que quem fez investimentos nestas estruturas, quando a construção para habitação invade o seu perímetro?

Educação e empatia são a chave para todos os problemas da sociedade, mas sabemos que ambas estão em desuso. Resta-me, pois, deixar o apelo a autarquias, autoridades, entidades locais, clubes, direcções, federação, organizadores e entusiastas, para que tentem encontrar em si mais humanidade, mais bom-senso e mais respeito pelas liberdades dos outros, na procura de soluções menos más para todos. 

Parece que não, mas já é pedir muito.